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quinta-feira, 3 de março de 2011

Roteiro da tragédia kaiowá no Brasil

   Carlos Tautz

   Pistoleiros atiram em direção a um automóvel com duas mulheres, um adolescente e três crianças de até 11 anos de idade. As vítimas são indígenas que acampavam em terra sob disputa com latifundiários. Os bandidos raptam sete outros índios. Torturam-nos. Puxam pelo cabelo e espancam uma mulher grávida de sete meses. Esfacelam a coronhadas a cabeça de um cacique de 73 anos. Tentam queimar vivo seu filho. Fogem. Alguns deles são presos posteriormente.
   Procuradores federais consideraram que, no estado onde os crimes aconteceram, não há condições para o julgamento dos acusados. A imprensa local e o juiz responsável pelo caso tratam os indígenas de forma abertamente racista. Diante do quadro, procuradores pedem e a Justiça federal aceita transferir o julgamento para outro estado, oito anos após o assassinado do velho cacique.
Embora pareça, este não é o roteiro de um filme sobre a “conquista” do oeste americano. O ataque dos 40 pistoleiros de fato ocorreu. No Brasil. Deu-se no Mato Grosso do Sul, em 12 e 13 de janeiro de 2003, na Fazenda Brasília do Sul, município de Juti, a pouco mais de 300km ao sul da capital Campo Grande. A fazenda fora ocupada pelos Guarani kaiowá, uma das etnias que mais sofrem com a expulsão de suas terras pelo grande negócio agrícola. Segundo o MPF e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão da CNBB, a tropa de mercenários foi contratada especialmente para atacar crianças, mulheres e idosos kaiowá
Na sexta passada (25), três dos réus foram condenados a 12 anos e 3 meses por sequestro, tortura, lesão corporal, formação de quadrilha armada e fraude processual. Ninguém foi declarado culpado pelo assassinato do cacique Marcos Veron. O MP, que denunciou 28 pessoas pelos crimes, chama as condenações de “um marco histórico e jurídico na luta contra a violência aos indígenas em Mato Grosso do Sul”. “A vitória completa seria a condenação dos réus também pelos homicídios e tentativas de homicídios”, disse à imprensa o procurador Luiz Carlos Gonçalves.
O julgamento ocorreu em São Paulo porque a Justiça federal em Mato Grosso do Sul temia que o poder do proprietário da fazenda, Jacinto Honório da Silva Filho, influenciasse jurados, a Justiça local e, até, as testemunhas.
Jorge Insabralde e Estevão Romero foram condenados e Carlos Roberto dos Santos foi absolvido de uma das acusações, embora os jurados tenham reconhecido a participação deste último no assassinato de Veron. Como disse o MPF-MS em nota à imprensa, Santos imobilizou “o indígena para que Nivaldo Alves de Oliveira - que está foragido - desferisse as coronhadas fatais. Mesmo reconhecido como coautor do crime, ele foi absolvido, em votação apertada: 3 jurados a favor da condenação e 4 contra”.
A desgraça dos kaiowá no MS, em grande medida causada pela radical ampliação das áreas plantadas com cana de açúcar, é rigorosamente do mesmo tipo que outros indígenas sofrem no Brasil inteiro. Em Rondônia, mulheres indígenas são levadas do Acre para prostíbulos que atendem a todo tipo de gente que trabalha na construção das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio. Na Bahia, uma mulher indígena foi presa com o filho bebê no colo. No Pará, indígenas e lideranças populares que se opõem à construção da usina Belo Monte são espionados e ameaçados. No País inteiro as violências se repetem, agravam-se e tudo indica que continuarão nos próximos anos.
Boa parte da expansão da economia brasileira se dará no meio rural, onde estão os imensos recursos naturais que o Brasil se especializou em exportar. E grande dose destes recursos está em terras indígenas ou em regiões contíguas a elas. É por esta razão que, de forma combinada, projetos de lei em tramitação no Congresso propõem abrir o acesso aos minerais localizados no subsolo de terras protegidas, em especial as indígenas, enquanto o governo federal planeja o crescimento exponencial da mineração no País. Com dinheiro público a subsidiar a farra do subdesenvolvimento.
Tudo faz parte do roteiro, como na tragédia kaiowá, do mesmo filme trágico que assistimos há 511 anos. E nada indica que um turning point salvador mudará o final dessa história.
Carlos Tautz é jornalista

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